Djamila Ribeiro

Djamila Ribeiro fala na Assembleia Geral da ONU

Nesta segunda-feira, 27, Djamila Ribeiro esteve na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), para falar como keynote speaker, isto é palestrante principal do evento em homenagem ao Dia em Memória da Abolição da Escravidão e o Comércio Transatlântico de Escravizados. A edição de 2023 deste evento anual foi “Lutar contra o legado escravista do racismo através de educação transformadora”, tema também da fala de Djamila. 

Em seu discurso, Djamila destacou os efeitos da democracia racial e a relação deste mito com a ausência de memória e de responsabilidade sobre os séculos de comércio escravista. A escritora também lembrou o trabalho de Grada Kilomba e Cida Bento, ao reinterpretar o mito grego de Narciso sob uma ótica anticolonial e como esta leitura é um ferramental para entender o legado da escravidão. 

Djamila ainda homenageou o trabalho de Paulo Freire ao falar sobre educação: A educação tem papel fundamental na criação de oportunidades e na ampliação de nossa visão de mundo. A educação tem o poder de transformar pessoas e instituições, afirmou.

Ao participar como keynote speaker, Djamila se tornou a primeira brasileira a falar neste evento que ocupa lugar de destaque na agenda anual de antirracismo na ONU.

Confira o discurso na íntegra:

 

 

“Excelências, distintos convidados, senhoras e senhores,

Estou honrada em estar aqui com vocês hoje, como uma mulher brasileira, para homenagear o Dia em Memória da Abolição da Escravidão e o Comércio Transatlântico de Escravos sob o tema: “Lutar contra o legado escravista do racismo através de educação transformadora”.

“Deixar o passado para trás” é uma expressão comumente usada por quem anseia por novos começos. Isso lhes dá a sensação de não se apegar ao que aconteceu, de deixar o passado para trás e seguir em frente.

Embora eu entenda o significado esperançoso da expressão nesses casos, gostaria de oferecer outros significados que tenham uma relação mais profunda com nossa história e cultura compartilhadas.

No Brasil, meu país de origem, “deixar o passado para trás” foi uma estratégia ideológica para ignorar uma história de opressão e os danos causados à população negra pelos quase 400 anos escravidão.

É importante lembrar que o país foi o último das Américas a abolir a escravidão. E no pós abolição, a ideologia da democracia racial foi imposta. Democracia racial uma ideia romântica de superação dos conflitos raciais por meio da negação do racismo. Crescendo como uma criança no Brasil era muito comum as pessoas dizerem: “racismo? Isso só tem nos Estados Unidos e na África do Sul. O Brasil é mestiço e já superou isso. Nós deixamos o passado para trás”.

Na verdade, a ideologia da democracia racial minou a busca dos negros pela memória e pela verdade, por uma compreensão real das consequências da escravização e das sociedades escravizadas.

Esse entendimento e ações corretivas, como políticas de reparação, foram adiadas por décadas. Foi o esforço coletivo dos movimentos de direitos civis negros e o trabalho de intelectuais críticos no Brasil que refutou a ideologia da democracia racial e expôs as feridas e duras verdades do passado.

A história precisa ser lembrada para que, no presente, possamos superar e transformar suas consequências, e construir um futuro mais esperançoso.

Como afirma Hannah Arendt, é preciso mergulhar profundamente nas narrativas do passado e enfrentar as atrocidades cometidas para não corrermos o risco de normalizar e repetir os males da opressão.

Não se trata de “deixar o passado para trás”. Ele já ficou para trás em um sentido cronológico. O que é preciso é trazer à luz o passado para que possamos entender melhor e enfrentar as contradições do presente. Em “Illusions”, a intelectual Grada Kilomba reinterpreta os mitos gregos a partir de uma perspectiva anticolonial. A história de Narciso é reinterpretada para refletir o espelhamento e a auto-absorção do grupo racial branco. Essa metáfora também foi utilizada pela intelectual brasileira Cida Bento quando escreveu sobre o pacto narcísico da branquitude, um pacto silencioso entre pessoas brancas que se premiam, se protegem e boicotam a diferença, refletindo-se na imagem do colonizador como universal paradigma político.

Kilomba analisa ainda a figura de Eco, a ninfa apaixonada pelo jovem caçador Narciso, que é amaldiçoada a repetir suas últimas palavras.

Inspirada por essas reflexões, farei um exercício com você para identificar alguns ecos da voz de Narciso em sociedades escravistas e identificar quem os entoa. Os ecos são entoados como a reprodução fragmentada de uma frase expressada repetidamente. À medida que avançamos no exercício e consideramos a história do Brasil, nos deparamos com desigualdades estruturais que se perpetuam e expõem a repetição de processos neocoloniais.

Kilomba analisou os vestígios estruturais da escravidão e do colonialismo, identificando que suas histórias são mal resolvidas e funcionam em nosso meio como fantasmas. No folclore tradicional, os fantasmas são espíritos errantes que estão presos no plano terrestre, perturbando e assombrando os lugares que habitamos.

Fantasmas tão velhos quanto às caravelas seguem ecoando em nossa vida cotidiana, recordam a história de um país construído em cima de mais de 300 anos de escravidão. Hoje, os alicerces dessa economia continuam empobrecendo a população negra e seus descendentes. Os ecos dessa história existem nas memórias dos sequestros que foram perpetrados na África pelos colonizadores, nas memórias dos navios negreiros e dos portos onde os corpos eram mercantilizados, seus dentes e ossos avaliados, nas memórias das plantações e chicotes, as sirenes das viaturas policiais, os altos índices de estupro feminino, na hierarquia das vidas e o resíduo da opressão que ecoa nos discursos de ódio nas redes sociais.

Podemos confrontar essas histórias pessoais e coletivas ou desviar o olhar. Nesse lugar de solidão e reconhecimento podemos reconhecer uma diversidade de pessoas que agora ocupam os espaços de poder e conhecimento. Podemos chamar pelo nome as mulheres que servem nosso café. Na minha história familiar pessoal, antes de casar com o meu pai, a minha mãe era empregada doméstica, e lembro-me dela falando da solidão do elevador de serviço onde se encontrava, tendo de agradecer efusivamente à família que servia quando lhe entregavam os velhos casacos. Imagino a solidão de não ser vista, de passar anos trabalhando em um lugar sem que as pessoas saibam seu nome.

Contar a história daqueles que foram vítimas do tráfico humano é um passo importante para enfrentar e reconhecer o passado, para que os fantasmas não possam mais nos assombrar.

Precisamos dar a eles um destino diferente. Precisamos contar a história da escravidão a partir da perspectiva daqueles que resistiram e lutaram, e daqueles cujas dores foram difíceis de suportar. Eu acredito no poder curativo do reconhecimento.

Romper com o olhar colonizador é acreditar na pluralidade da história. É perguntar, ouvir e registrar as histórias por trás dos olhos tristes. É ver a humanidade daqueles que, devido à opressão, foram confinados em lugares de subordinação.

Reconhecer as consequências do passado deve nos impulsionar a criar um futuro de oportunidades e isso deve incluir a criação de políticas públicas que assegurem a emancipação das populações negras e vítimas do tráfico.

A educação tem papel fundamental na criação de oportunidades e na ampliação de nossa visão de mundo. A educação tem o poder de transformar pessoas e instituições.

O educador brasileiro Paulo Freire defendia que a educação deveria ser uma prática de liberdade, um movimento que amplia a compreensão de nossas realidades para transformá-las.

Ultimamente, muito se tem falado sobre a importância da diversidade e da reforma política, mas acho que essa conversa deve estar ligada à conversa sobre desigualdade.

Precisamos falar sobre a desigualdade tal como foi historicamente construída durante a colonização.

Quando entendemos as consequências dessa história, nos tornamos agentes de transformação em nosso mundo. E esse compromisso deve ser inegociável.

Obrigada”.

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